Introdução
Este artigo foi elaborado a partir de uma experiência clínica realizada no Hospital Central da Marinha.
Em decorrência dos atendimentos realizados pelo paciente com o nome fictício Rui foi surgindo a curiosidade de articular a prática com a teoria oferecida e ministrada nas aulas do curso de especialização em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Essa experiência clínica vem se desenvolvendo nesses últimos dois anos e meio numa construção constante com diversos questionamentos e dúvidas apresentadas tanto pelo paciente quanto pela analista nas supervisões oferecidas pelo curso.
Resumo
Foi em 1986 no artigo intitulado "A hereditariedade e a etiologia das neuroses", que Freud em suas pesquisas sobre o inconsciente declarou uma nova neurose além da histeria: Neurose obsessiva. Isso foi determinante para mais um tipo clínico da estrutura neurótica que compõe juntamente com a histeria, as neuroses de transferência.
E em 1909, Freud publicou o texto intitulado "A propósito de um caso de neurose obsessiva" relatando o caso do Homem dos Ratos descrevendo o paradigma psicanalítico deste tipo de distúrbio. E ao final, apresento o caso clínico do paciente Rui buscando articular a teoria apresentada juntamente com a prática.
Caso Clínico: Rui
Neste presente trabalho irei discorrer sobre a minha experiência clínica nesses últimos dois anos e meio em que venho acompanhando o paciente que irei chamá-lo pelo nome fictício de Rui.
Após muitas supervisões semanais juntamente a supervisora/professora Maria Anita discutindo as questões/dúvidas do paciente/analista concluímos em se tratar de um caso de neurose obsessiva.
Antes mesmo de apresentar o caso gostaria de esclarecer que não são poucas as dificuldades que apresenta um trabalho analítico com pacientes obsessivos.
Pois as dissociações idéias-afetos, mente-corpo, representação-impulso constituem alguns dos problemas fundamentais a serem trabalhados com estas estruturas.
As contradições entre comportamentos de retenção, de controle, e comportamentos expressivos constituem-se, igualmente, em objeto de necessária atenção.
Rui me procurou no hospital em que trabalho com a queixa de que era um alcoólatra e estava muito preocupado com os últimos acontecimentos que ocorreram nas suas últimas "bebedeiras". Segundo ele, já fizera anteriormente alguns tratamentos para parar de beber e chegou a ficar nove anos sem fazer uso deste recurso. Disse que não queria mais beber porque não se lembrava de coisas que ficara sabendo depois que ficava sóbrio.
Sempre se utilizava da bebida para poder ter relação com outras mulheres e extravasar determinadas sensações de prazer em que não saberia me dizer de forma consciente quais seriam.
É um homem de meia idade casado há vinte cinco anos com a mesma mulher e com duas filhas de outro casamento.
Relatou sua história sendo um homem que trabalhava demais e estava sempre se destacando naquilo que fazia, porém nunca obtinha o reconhecimento que gostaria. Repetia o mesmo discurso quanto a sua família, esposa, filhas e amigos.
Disse que a bebida nunca o limitou na sua capacidade de gerenciar todos os aspectos de sua vida, principalmente o financeiro.
No decorrer da análise relatou em muitos momentos a falta de afeto dos pais, irmãos, filhas e esposa. E ao mesmo tempo em todas as suas relações era muito presente materialmente e sempre submetido as escolhas e desejos dos outros.
Nunca se colocava na posição de desejar algo ou alguém. Dizia não saber como foi que se envolveu com as mulheres que casou, pois todas foram pessoas que simplesmente o convidavam para morar com elas e assim o fazia.
Disse o mesmo quanto ao seu trabalho. Sempre que era elogiado pelos chefes e convidado para ir trabalhar em lugares diferentes com eles ia sem questionar, pois achava que assim deveria ser feito.
Trata-se de um caso de neurose obsessiva em um homem caracterizado pela anulação e exclusão do desejo, como resto da demanda do Outro, literalmente identificada ao objeto anal, com seu brilho fálico.
Sabemos que em psicanálise, o masculino e o feminino são definidos a partir da posição que o sujeito assume em relação ao falo. Verificamos nos textos de Freud que a importância dada ao falo está no fato de que ele representa o órgão do desejo.
A análise, desde o seu início, permitiu observar a presença forte de uma inibição no campo do desejo, que não o condenava a tocar a sua vida, mas o impedia de sustentar suas iniciativas e escolhas, e delas tirar uma satisfação.
Suas ações pareciam mais um movimento automático de repetição, não havendo reconhecimento do desejo que as animava. Além disso, carregava um sentimento de fracasso por não ter o reconhecimento que considerava ser importante para si mesmo.
A questão central do obsessivo "estou vivo ou morto" apresentava-se de forma pregnante, evidenciando um quadro sintomático de impedimento que o colocava numa posição de passividade infantil, "esperando que as pessoas fizessem algo por ele."
A busca da análise se deu inicialmente pela questão da "bebedeira" e um forte sentimento de angústia que não sabia localizar a sua origem. Na realidade, logo no início o paciente parou de beber, e o que resultou disso foi um forte sentimento de culpa, impotência e a incapacidade de fazer escolhas e desejar. É nesse momento de análise que Rui passa a questionar a sua posição de sujeito e a sua relação com a demanda.
A análise se desenvolve em um quadro em que a relação ao Outro se caracteriza por uma forte idealização, em que o Outro, reduzido à condição de outro (semelhante) é considerado perfeito. Ideal de eu que se coagula em uma imagem de completude, sem furo, que almeja para si. Como o negativo dessa imagem, a ela tudo falta "está mergulhada na falta" o que o aproxima de uma posição melancólica.
Na dialética da demanda e do desejo, o desejo vacila entre a completa identificação ao desejo do Outro como um único desejo- e a oposição de desejo- ou um ou outro. Em ambos os casos é o seu desejo que surge como excluído. Como é típico da neurose obsessiva, o desejo que é apreendido no Outro é recoberto pela demanda do Outro, à qual se oferece em um exercício constante de "servidão voluntária", não sem desejar a morte do outro. Rui colocava sempre a sua posição de homem "bonzinho" e que atendia a todas as necessidades familiares e no trabalho. Dizia que era uma justificativa plausível pelas coisas que fazia no ato de sua "bebedeira". Porém sentia raiva por perceber que em muitos momentos fazia tudo "tão correto" atendendo as necessidades dos outros, mas em contrapartida ainda existiam pessoas da família que não gostavam dele e até mesmo ninguém o procurava. A analista questionava junto ao paciente qual era a real necessidade que sentia em se dedicar tanto as pessoas. O que o gratificava em realizar tais "tarefas". Respondia que não sabia o porque, mas acreditava ser seu sentimento de culpa. Quando questionado sobre a culpa, sempre respondia que não saberia explicar exatamente, mas achava que era uma forma de justificar os momentos ausentes em virtude de sua embriaguez.
É nessa dialética que ela cobre e encobre seu desejo, reduzindo-se ao lugar de resto da demanda no Outro, literalmente ao objeto anal.
A análise prosseguiu, entretanto, sem interrupções, a partir de uma avaliação que fiz de sua insistência no trabalho, e na importância que dava a ele.
Porém, os avanços da análise, contudo, eram acompanhados de recuos, em um "vai e vem" característico, em que se manifestava a dificuldade de transformar as palavras em atos, assumindo sua condição de sujeito, e passando ao lugar do desejo.
O fracasso a que estavam condenadas suas iniciativas, em que a incidência do desejo se fazia mais pregnante, estava relacionado ao temor do vazio que poderia advir com a realização do que desejava, fazer suas próprias escolhas sem se importar com os demais.
A condução da análise encaminhava-se no sentido de abrir brechas nessa cadeia de repetições, procurando endereçá-la para o lugar de desejo, a partir do reconhecimento da perda, o que significava a não absolutização dessa perda, isto é, sua delimitação. Nesse percurso alguns deslocamentos operaram-se no processo de análise.
O primeiro grande deslocamento ocorre quando ele se dá conta de que a análise não visa recompor suas falhas.
Confessa que buscara a análise com esse objetivo. A partir daí, uma série de outros movimentos se verifica, dando início a um processo de implicação subjetiva em que a prevalência do Outro, tudo para o outro ou tudo por causa do outro é abalada.
Rui passou boa parte da análise questionando o seu casamento, mas nunca se sentia a vontade de romper devido a culpa de acreditar que ele era o maior responsável pelo "insucesso" dele.
Depois de certo tempo resolveu pela primeira vez pedir o divórcio, pois concluiu que não a amava e mantinha essa relação pelo medo de ficar só e se "afundar" ainda mais na bebida.
Para ele não faltava apenas amor, mas muitas coisas que a relação não partilhava de ficarem unidos. Sua esposa era uma pessoa que "compactuava" com as relações que ele mentinha fora do casamento, pois nunca questionou na sua sobriedade a ausência dele. E quando passou a ser mais presente em casa sentiu que não a agradava e era alguém até mesmo indiferente.
Observa-se com isso um deslocamento do lugar de vítima do Outro e uma implicação subjetiva naquilo que a faz sofrer, percebendo esse Outro como uma fantasia sua.
Ao mesmo tempo, rompe a cadeia de repetições de fracassos e consegue escolher trabalhar menos com aquilo que quer e aposta em morar sozinho.
A análise prossegue centrada no tema da separação e da importância de reconhecer suas faltas, observando-se um deslizamento na leitura que faz de si mesmo nas relações que constituiu.
Ele passa a fazer um discurso com outra leitura de sua fantasia, em que passa a incluir-se no campo do desejo. Percebeu que sempre esteve grudado no Outro, por não aceitar a existência de um limite, sentia-se excluído, achando que os outros podiam e ele não.
A sujeição a esse Outro onipotente condenava-o, na busca da completude, a sustentar seu desejo como excluído, o que levava a negá-lo.
A partir daí observa-se a abertura de um espaço na relação do sujeito ao Outro, uma separação na qual percebe a distância entre o papel que representava para o outro e ele mesmo. Admite que sempre representou o papel que o outro esperava dele, isto é, que imaginava que o outro esperasse dele.
Nesse ponto da análise percebe também que sempre se colocou numa posição de submissão aos pais e afirma que fazia de tudo para agradá-los, mesmo sem eles terem na realidade exigido qualquer interferência quanto as suas escolhas na vida amorosa e na vida profissional.
Percebeu que era prisioneiro da sua própria fantasia.
Além disso, tinha muita dificuldade de procurar as filhas por ter medo de ser rejeitado por elas. Disse que pagava pensão mesmo sendo elas maiores de idade e casadas porque não se sentia a vontade em virtude da ex-mulher ter pedido separação quando elas ainda eram pequenas.
Disse que saía com elas quase todos os fins de semana, mas a ex-mulher foi proibindo essa visitação e ele foi aceitando essa condição como todas as outras de sua vida.
A análise passa progredir porque ele passa a dizer:
"Antes era sempre o outro, depois o que eu achava que o outro queria, depois o que eu queria que o outro quisesse e agora sou eu e meu desejo. Reconheço a autoria da minha vida." "Era sempre os outros, o Outro. Eu negava a minha vida."
Com isso assume o lugar de intérprete de sua análise, apontando os momentos de resistência e o lugar do analista na condução do processo. Permaneço em silêncio como testemunha desse movimento.
O recurso à demanda do Outro, como modo de viabilizar seu desejo passa a ser questionado pelo paciente como um processo agora "enfraquecido".
Sente-se mais a vontade para escolher e desejar, porém ainda apresenta alguns tropeços quanto a assumir sua posição por exemplo na relação com as filhas.
Está morando sozinho, tem uma namorada e já demonstra o afeto que sente por ela e não mais procura outras relações. Já consegue perceber o seu movimento nas relações que constitui, mas ainda comete "faltas" segundo ele por uma certa dificuldade em manter a sua posição. Já se implica na análise e em todas as suas escolhas e decisões.
Sente-se mais seguro e não mais culpado pelo término do seu casamento. Mais ainda fala de um vazio que sente ao morar só, mas por outro lado, sente que está num processo de auto-deciframento.
Considerações Finais
Este trabalho foi realizado com o intuito de esclarecer alguns pontos apreendidos pela aluna do curso de especialização em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro sobre a neurose obsessiva e a articulação com a sua prática clínica.
Durante todo o processo do curso juntamente com a experiência clínica foi surgindo muitas dúvidas e questionamentos quanto a abordagem do caso clínico, a formulação do diagnóstico e até mesmo a posição de um suposto saber ao se colocar no papel de analista.
Porém com as supervisões somadas aos conhecimentos teóricos de Freud e Lacan tudo isso propiciou um novo olhar na prática clínica.
O caso apresentado continua em processo de análise, desafiando o lugar tanto do analisando como do analista.
Porém, sabemos que o neurótico obsessivo é um conformista, submetido à palavra do outro, escravo temeroso em relação ao seu desejo.
Mas sabemos que a psicanálise aposta no sujeito do desejo e na possibilidade de, se quiser, mudar o seu destino.
Não é um caminho fácil, muitas vezes doloroso, moroso, mas que opera. E é a partir disso que a psicanálise se torna um caminho possível na transformação do sujeito.
Joyce Medeiros Guasque de Mesquita
Psicóloga Clínica
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